Revista do Exército Brasileiro no Bicentenário: materiais didáticos e história pública


Este texto foi apresentado à disciplina Historia Pública en las escuelas: materiales y prácticas, ministrada pela Profa. Dra. Gisela Andrade (Universidad Nacional de Quilmes / Argentina), no Programa de Pós-Graduação em História Pública, Unespar/Campo Mourão. Para o trabalho final da disciplina, optei pela proposta de analisar um material elaborando sugestões para sua utilização em sala de aula, considerando-o como potencialidade de se tornar um instrumento de orientação e/ou avaliação da prática docente. 



Os materiais são possibilidades para pensar o ensino de história, já que eles mediam a prática dos professores e a produção dos alunos nas tarefas cotidianas em sala de aula. Os professores selecionam, utilizam, recomendam e produzem materiais. Materiais não são neutros, eles propõem uma representação de mundo a ser ensinada. Eles tornam-se material didático/escolar ao entrarem em sala de aula e, nesse sentido, a escola produz seu próprio saber, um saber diferente da historiografia.

Existe a necessidade de aulas de histórias marcantes e que proporcionem experiências aos alunos (Cubas, 2022). Trago a parte 1 da revista número 38 de julho de 2022, da Fundação Cultural do Exército Brasileiro, como possibilidade de material didático para ser usado em sala de aula. O objetivo geral, ao trabalhar com esse material, é conduzir os alunos à compreensão de que a história e a memória de uma sociedade estão em constantes disputas. Nesta proposta, as perguntas são o pilar central da discussão, isso porque somente através delas é possível pensar como esse material poderia ser analisado em sala de aula e de que serviria para os alunos. Para atingir isso, objetiva-se analisar a forma como o material apresenta seu discurso próprio, as imagens que foram apresentadas e as pessoas que ocuparam esse espaço para tratar da memória da Independência do Brasil.

Nesse sentido, também é importante pensar o que, ou qual caminho, levaria eles a analisarem tal material e qual o objetivo de se trabalhar com ele em sala de aula. Então, o texto será dividido em dois momentos. Primeiramente, irei apontar algumas questões sobre o material e analisá-las, considerando sua realização como sendo em sala de aula com os alunos (o público). Depois, trarei outras sugestões de questionamentos que poderiam ser feitos ao material, mas que não cabem de ser realizados aqui. Antes de entrar nos dois momentos citados, farei uma breve análise geral sobre o recorte temático aqui proposto.

As disciplinas escolares estão ligadas a seu contexto, principalmente os conteúdos trabalhados. O ano de 2022, no Brasil, foi um ano marcado pelas diversas comemorações e debates em torno do Bicentenário da Independência, comemorado em 7 de setembro deste ano. Na academia, nas escolas, pela sociedade, comunidades, pelos governos Federal e estaduais, enfim, nas diversas camadas e setores da sociedade brasileira. A academia produziu muito a respeito do tema fazendo congressos, seminários, encontros, debates, rodas de conversas, revistas, simpósios, etc.

O Portal do Bicentenário, por exemplo, visou  produzir, editar, fazer curadoria, organizar e disponibilizar conteúdos sobre os 200 anos da Independência do Brasil e seus desdobramentos, analisados por distintos campos do conhecimento (científicos e escolares), na arte, na cultura e nos mundos do trabalho. Em 2022,  esperava-se que o tema do Bicentenário da Independência do Brasil mobilizasse o país, e de fato mobilizou. Buscando promover alguma reflexão, historiadoras e historiadores se uniram para falar dos 200 anos a partir de uma permanente reflexão sobre o nosso conflitivo processo de formação do Brasil até os dias de hoje, alguns adotando até mesmo a expressão Independências, no plural, como é o caso do site citado.

Mas, nesse ano o Brasil também encontrava-se diante de desafios e escolhas que traziam moralização arcaica dos costumes, valores antidemocráticos e criminalização da política, sindicatos e movimentos sociais, podendo entrar  no caminho da mediocridade e da subalternidade econômica, política, social, intelectual, moral e cultural. O governo federal (2019 - 2022), buscando demonstrar o seu patriotismo, trouxe o coração do primeiro imperador brasileiro, D. Pedro I, o “herói da independência”, numa tentativa de se igualar a esse "herói". Isso evidencia as disputas que agiram em referência a esse tema, fundamental para a memória nacional. Aqui, trago em destaque a revista do setor de cultura do Exército Brasileiro, que também entrou no campo de disputas pela história e memória sobre a Independência.

     O material selecionado é um número especial da revista DaCultura, da Fundação Cultural do Exército Brasileiro, sobre os 200 anos de Independência. Segundo o site da Fundação Cultural do Exército Brasileiro, na História do Exército a Grandeza do Brasil,  a

Revista DaCultura veio ocupar um espaço importante na divulgação de temas e estudos relacionados às atividades culturais do Exército Brasileiro. Com esse propósito, contribui, efetivamente, para que a sociedade em geral tenha uma percepção mais nítida dos múltiplos empreendimentos que a Força Terrestre desenvolve, em âmbito nacional, na área cultural. Mas a Revista DaCultura é também um veículo de difusão de estudos sobre a gestão do patrimônio cultural, material e imaterial, participando, portanto, produtivamente, do debate de tão importante assunto (FUNCEB, 2022).

Fonte: FUNCEB, 2022.

          A edição foi produzida no contexto de debates e abordagens que foram apresentadas acima e traz a perspectiva de pessoas influentes para o Exército Brasileiro, incluindo o então vice-presidente do Brasil, Gel. Hamilton Mourão, sobre os acontecimentos da Independência do Brasil. Em 2022, ano da publicação do número analisado, o seu diretor era Synésio Scofano Fernandes, o editor a Fundação Cultural Exército Brasileio, o redator-chefe Paulo Roberto Rodrigues Teixeira, como colaborador Walter Nilton Pina Stoffel, na revisão Álvaro Luís Sarkis da Silva e Susana de França, assistentes de redação Édison Amancio, Francisco Ferreira Machado e Marcos Trajano de Souza, editoração eletrônica Murilo Machado e Marcos Trajano de Souza e a impressão de Veloprint Gráfica.

        Nas páginas iniciais foram apresentadas As palavras do Presidente da FUNCEB Carlos Monteiro (formação na área de Engenharia Civil pela Fundação Armando Alvares Penteado [FAAP]), Antônio Hamilton Mourão (carreira militar),  Francisco Roberto Albuquerque (carreira militar), Enzo Martins Peri (carreira militar) e Richard Fernandez Nunes (formação militar). Os artigos trazidos na revista são: Independência - Flavio Correa (jornalista, publicitário e empresário); 200 anos de Independência, Brasil um país vulnerável - Roberto Duailibi (publicitário); Grito do Ipiranga - Marcos Arbaitman (advogado, empresário); A Engenharia na Bahia, da Independência à República - Mário Mendonça de Oliveira (arquiteto) e Cibèle Celestino Santiago (arquiteta); As Forças Terrestres e os desafios da Independência - Arno Wehling (historiador, advogado); O 2 de julho, um feriado nacional? - Adler Homero Fonseca de Castro (historiador); e 1º Regimento de Cavalaria de Guardas “Dragões da Independência” - Guilherme Santana Ebre (ciências militares). Esse número da revista DaCultura circulou de maneira impressa e digital, das quais tive acesso à ambas.

Fonte: FUNCEB, 2022.

  Neste trabalho busquei somente uma análise breve que pode ser feito em sala de aula com os alunos, mas observando o material é possível imaginar outras formas de trabalhá-lo. Além das perguntas que irei apresentar, esse material também pode ser abordado de outras maneiras, como: avaliar artigo por artigo individualmente; avaliar somente as imagens que são utilizadas nos artigos; realizar uma pesquisa sobre quem são os autores e por que foram convidados para compor o número; analisar a revista de forma geral e os seus números; a Fundação Cultural Exército Brasileiro e a sua produção de materiais; ponderar sobre discursos específicos dos autores no material; analisar o site de divulgação da revista; etc.

Para chegar à análise desse material com os alunos, é necessário trabalhar dois momentos importantes anteriormente: o processo de Emancipação Política do Brasil e as comemorações do Bicentenário. Com isso, demonstrar aos alunos como esta análise pode os ajudar na compreensão dos conteúdos e contextos propostos, percebendo como a sociedade disputa a memória para formar a identidade nacional e como seus materiais mostram essas intenções nos seus discursos. É importante considerar como e com quais perguntas esse material, também o seu conteúdo, podemos instigar os alunos a refletirem sobre a diversidade de linguagem (pinturas, fotos, textos, etc) que ele contém.

         No caso das imagens (fotos ou pinturas), por exemplo, precisamos pensar: quais daqueles imagens escolher para trabalhar? Como instigar os alunos a lerem as imagens para ensinar e aprender a história? Para isso é preciso, também, apresentar aos alunos formas de analisar imagens. As imagens têm sua própria lógica, por isso é necessário estudar o seu contexto e a sua intenção. É possível questionar o que/quem aparece na imagem, o que/quem não aparece na imagem, o que ela sugere ou não, qual a sua lógica ou sua intenção, etc. A imagem é construída, passa por escolhas, filtros, têm subjetividade, elaa não mostra só aquilo que se vê.

Em primeiro lugar, o editorial apresenta o número especial? Ora, explicam como o Brasil é “uma obra maravilhosa de construção institucional, política, econômica e cultural” graças à participação do “nosso querido Exército [...] em todos os lugares. Não movido pela busca da supremacia ou poder, mas por uma imposição teleológica”. Para o Brasil ser “único e grandioso”, o “nosso querido Exército foi, é e sempre será um dos fatores essenciais dessa coesão”. Nesses trechos exemplificados aqui, já podemos pensar em diversas noções para trabalhar com os alunos, como a importância do discurso na construção de uma identidade; como o Exército se vê no processo de construção do Estado Nacional Brasileiro; a maneira pela qual eles demonstram ser peça fundamental para o funcionamento da sociedade, entre várias outras coisas.

Fonte: FUNCEB, 2022.

            Seguindo a ideia das imagens para poderem ser trabalhadas, nas páginas 50 e 51 aparecem duas que chamam atenção. A primeira é a pintura de Maria Quitéria, que chamou minha atenção porque não imaginei que apareceria diversidade de gênero no material. Mas, como ela é trabalhada nele no artigo? A única menção a ela é de ter sido um exemplo, “cuja condição de mulher não seria sujeita ao serviço militar, mas preferiu se apresentar, falsificando tal condição para combater os portugueses”. Ora, ela não é trabalhada de maneira devida e só aparece por ter estado no Exército. A segunda imagem é de um soldado negro, pois o “engajamento de homens de cor nas fileiras foi favorecido pelo princípio adotado pelo Exército Brasileiro que se formava, de aceita recrutamento de soldados negros e pardos, uma novidade [...]”. Esses trechos demonstram que o material não reflete crítica e historicamente sobre o período que se propõe, além de reproduzir um discurso discriminatório. Tudo isso pode ser debatido em sala, com e pelos alunos.

Fonte: FUNCEB, 2022.

Em segundo lugar, há diversas questões que podem ser feitas sobre esse material com os alunos em sala de aula e que não foram vistas aqui, por exemplo: Qual o significado da pintura na capa? Ela foi debatida? Ela está ali só por estar?; Quais fontes foram usadas pelos autores em seus artigos?; Quais os pontos positivos e negativos do material?; Como foi a recepção desse material pela sociedade?; Quem são os personagens que aparecem nos artigos?; Como os acontecimentos são refletidos?; A revista possui patrocinadores? Quem?. Enfim, são diversas as perguntas, questionamentos e reflexões que cabem a esse material aqui proposto.

A história escolar não é apenas reprodutora do status quo, também é produtora de sua própria cultura. Ela é pública porque é uma história para as salas de aulas, uma história nas salas de aula, uma história com as salas de aula e suas comunidades, uma história escolar com seus vínculos e com todas as fábricas de produção de saberes históricos (Andrade; Andrade, 2016). Dessa forma, a história escolar pode ser para os públicos, sobre os públicos e com os públicos (Santhiago, 2016). A diversidade de materiais trabalhados em sala de aula contribui para atualizar e instalar novos temas e problemas. Portanto, trabalhar esse material aqui apresentado permite ir além do conteúdo monótono trazendo uma variação dos materiais, visto que os materiais de divulgação tornam-se escolares ao entrarem em sala de aula, numa diversidade de materiais com conteúdo histórico usados nas aulas de história. Tudo isso contribui para que, buscando experiências em uma aula de História, tornemos o passado presente, ou seja, não o  tratar como mera informação do que ocorreu mas, ao revisitá-lo, mas se deixar afetar, entendendo-o como constitutivo do que somos (Cubas, 2022).


Referências


AUGUSTOWSKY, G. Imagen y enseñanza, educar la mirada. In: AUGUSTOWSKY, G.; MASSARINI, A.; TABAKMAN, S. Enseñar a mirar imágenes. Buenos Aires: Tinta Fresca, 2008.


CARDOSO JR, J. C. BICENTENÁRIO (1822/2022) DA INDEPENDÊNCIA ... OU MORTE?! CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE? . Revista Brasileira de Administração Política, [S. l.], v. 14, n. 1, p. 9–31, 2022. DOI: 10.9771/rebap.v0i1.50925. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rebap/article/view/50925. Acesso em: 29 abril 2023.


CUBAS, C. J. Por uma história que corte feito estilete: presença, experiência e sentidos em uma aula de História. Revista História Hoje, [S. l.], v. 11, n. 22, p. 15–32, 2022. DOI: 10.20949/rhhj.v11i22.851. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/851. Acesso em: 30 de abril de 2023.


DUSSEL, I.; GUTIÉRREZ, D. Educar la mirada. polìticas y pedagogías de la imagen. Buenos Aires: Manantial, 2006.


FUNCEB. Independência do Brasil: 200 anos - edição especial. Disponível em: https://www.calameo.com/read/005252591f231331f0787. Acesso em: 30 de abril de 2023. 


FUNCEB. Site da Fundação Cultural do Exército Brasileiro, na História do Exército a grandeza do Brasil. Disponível em: https://www.funceb.org.br/revista-dacultura. Acesso em: 30 de abril de 2023.


PAIVA DE ANDRADE, E.; ANDRADE, N. História Pública y Educação. Tecendo uma conversa, experimentando uma textura. In: MAUAD, A. M.; RABELO, J.; SANTHIAGO, R. (org.) História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. São Paulo. Letra e Voz, 2016)


PORTAL do Bicentenário. Disponível em: https://portaldobicentenario.org.br/. Acesso em: 30 de abril de 2023. 


SANTHIAGO, R. Duas palavras, muitos significados: algunos  comentários sobre a historia pública no Brasil. In: MAUAD, A.M.; RABELO DE ALMEIDA, J. y SANTHIAGO, R. (org.) História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.














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