A HISTÓRIA DO ASSENTAMENTO RURAL “PONTAL DO TIGRE”, QUERÊNCIA DO NORTE, PARANÁ


    
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    Para compreender o processo de [re]ocupação da terra em Querência Norte pelo MST se faz necessário entender antes de tudo  o processo de colonização da região Noroeste do Paraná que deu origem ao município. A colonização da região foi oficializada em 1944 com a instalação da Colônia Paranavaí pelo interventor Manoel Ribas durante a política federal de colonização do Estado Novo de Vargas (1937-1945) para as áreas de fronteira agrícola do país, denominada “Marcha para Oeste”.

Querência do Norte foi fundada em 1950, quando Carlos Antonio Franchelo e Ângelo Bortolli organizaram em Londrina, Norte do Estado, a empresa colonizadora BRAPA - Companhia Brasil-Paraná Loteamentos S.A. para lotear as Glebas 27, 27-A, 28 e 29 da Colônia Paranavaí. Em 26 de novembro de 1954, pela Lei Estadual nº 253, foi criado o município de Querência do Norte com território desmembrado de Paranavaí e sua instalação oficial deu-se em 5 de dezembro de 1955 com a posse do primeiro prefeito eleito, Ozório Ferreira Lemos. O município encontra-se situado no Extremo Noroeste do estado do Paraná na divisa com o estado de Mato Grosso do Sul, na confluência do rio Ivaí com o rio Paraná. Além do distrito sede, o município possui ainda dois distritos administrativos: Icatu e Porto Brasilio; e mais duas localidades: Porto Felício e Porto Natal.

Como Carlos Antonio Franchelo e Ângelo Bortolli, donos da colonizadora BRAPA, adquiriram as glebas 27, 27-A, 28 e 29 da Colônia Paranavaí para colonização, Adélia Aparecida de Souza Haracenko, em sua tese de doutorado “O Processo de Transformação do Noroeste do Paraná e a Construção das Novas Territorialidades Camponesas” (2007), explica que as glebas foram doações do então governador Moysés Lupion a seus “amigos” em troca de apoio político. O primeiro agraciado neste caso foi o libanês Salim Sayão que era muito próximo do governador e que depois vendeu as terras para Carlos Antonio Franchelo e Ângelo Bortolli (2007, p. 275).

Ao colonizar Querência do Norte, Antonio Franchelo e Ângelo Bortolli realizaram intensa propaganda no estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de atrair o interesse de famílias gaúchas para comprar as terras. Por isso, o nome do município foi dado pelos colonizadores em homenagem aos pioneiros provindos daquele Estado. Porém, a localidade também recebeu migrantes de outras regiões do país, principalmente do Nordeste. De acordo com Haracenko “durante o período da colonização a grilagem e a violência contra posseiros foram marcantes naquele município” (2007, p. 276). A autora constatou ainda que um dos métodos mais utilizados pelos grileiros para expulsar os posseiros, foi o despejo. O gaúcho Santo José Borsatto entrevistado por Haracenko em 2007, falou de um grande despejo de mais de trezentas famílias de posseiros que ocorreu em 1968, na então Gleba 29, atual município de Querência do Norte. Segundo o pioneiro:


A Gleba 29 tinha bastante posseiro, que era toda a margem do rio Paraná, do Ivaí até o município de Monte Castelo, era reserva do Estado. [...] Terra boa, tinha muita várzea, [...]. A Gleba 29, o Moysés Lupion deu título para o Felício Jorge, mas o Felício Jorge só pegava se tirasse todo mundo [...], trezentas e tantas famílias. Não sei a lábia que tiveram. Iludiram o povo que eles iam dar uma terra melhor que a 29, levaram para a Transamazônica em [19]68. O Felício Jorge começou a transplantar o gado, aí durando poucos anos pegou e vendeu para o grupo Atalla. Depois de certo tempo para cá a gente ficou sabendo que o grupo Atalla tinha tirado dinheiro do Banestado para comprar essa terra, na época falavam em 36 milhões. Como o grupo Atalla [...] até hoje não pagou essa dívida, [...], foi o que trouxe os sem-terra para Querência do Norte (BORSATTO, Apud. HARACENKO, 2007, p. 281-282).

 

Com a passagem da entrevista acima, Haracenko apresenta um cenário de luta pela posse da terra na região Noroeste do Paraná durante sua colonização e que mais tarde, no final da década de 1980 e início da década de 1990, deu lugar ao movimento de retorno organizado pelos trabalhadores rurais sem-terra para compor o Assentamento Rural Pontal do Tigre de Querência do Norte, além de muitos outros assentamentos que surgiram na região. Atualmente o Extremo Noroeste do Paraná conta com o maior número de assentamentos rurais do MST de todo o Estado. Além do Pontal do Tigre, o próprio município de Querência do Norte possui ainda outros nove assentamentos, sendo eles: Che Guevara, Chico Mendes, Fazenda Santana, Irmã Dorothy, Luiz Carlos Prestes, Margarida Alves, Sebastião da Maia, Zumbi dos Palmares e Antonio Tavares Pereira. Em Marilena, município próximo reúne mais três assentamentos rurais: Sebastião Camargo, Quatro Irmãos e Santo Ângelo. Em Santa Cruz de Monte Castelo, cidade ao lado, existem outros quatro assentamentos: 17 de abril, Oziel Alves Pereira, Teixeirinha e Paraná.

 

Origem e atuação do MST em Querência do Norte

 

De acordo com Vanderlei Amboni, em sua tese de doutorado A Escola no Acampamento do MST: Institucionalização e Gestão Estatal da Escola Itinerante Carlos Marighella (2014), o MST se originou de lutas pela reforma agrária “[...] que foram desencadeadas no Brasil na data de 07 de setembro de 1979 com as ocupações das fazendas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul [...]” (2014, p. 51). Ainda segundo Amboni, o MST “teve como marco inicial o encontro realizado em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, no Paraná” (2014, p. 53).

O encontro de Cascavel reuniu vários grupos de agricultores sem-terra de todo o Brasil e, particularmente do Oeste do Paraná, região do Estado em que o movimento era bastante atuante já no início da década de 1980. Ao ser entrevistado, em 15 de dezembro de 2019, o morador do Assentamento Rural Pontal do Tigre e um dos líderes do MST na região, Celso Anghinoni, disse que “quando teve a desapropriação das terras que foram inundadas pela hidrelétrica de Itaipu as famílias que eram donas das propriedades foram indenizadas, mas não as famílias dos que trabalhavam nas propriedades, tais como dos meeiros, parceiros, arrendatários entres outros”.

De acordo com Adélia Aparecida de Souza Haracenko em seu artigo O Processo de Transformação do Território no Noroeste Do Paraná e a Construção das Novas Territorialidades Camponesas: “Toda a mobilização dos desapossados resultou no Movimento Justiça e Terra - MJT, que foi o germe do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O vínculo do MJT com o MST se explica porque o primeiro foi, a partir de 1980 o embrião das lutas camponesas organizadas no Paraná” (2005, p. 01).

De acordo com Fabrini, Roos, Marques e Gonçalves (2012), “em 1981 os agricultores sem-terra do Oeste do Estado organizaram o Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Oeste do Paraná (MASTRO) que inspirou o surgimento de vários movimentos de sem-terra em outras regiões do Estado” (2012, p. 35).

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nasceu oficialmente em 1984, no 1º Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ocorrido em Cascavel, no Paraná, entre os dias 20 e 22 de janeiro, tendo a participação e o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de alguns sindicatos de trabalhadores rurais, herdeiros de lutas pela terra no Brasil.

Ainda segundo Anghinoni, o Estatuto da Terra, Lei Federal 4.504, criada pelo governo militar em 30 de novembro de 1964 em seu Art. 1° que regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola, “foi extremamente importante para instrumentalizar o movimento pela reforma agrária a partir do início da década de 1980”. De acordo com o Estatuto da Terra – disse Anghinoni – “em uma área ou região em que há concentração de trabalhadores rurais querendo terra em que a área é improdutiva, pode ser desapropriada. Foi assim que nasceram esses movimentos sociais, inclusive a MASTRO, da qual eu fiz parte”. Disse também que participou do 1º Seminário Latino-Americano das Experiências de Reforma Agrária em Brasília, no qual vários outros países que já tinham realizado a reforma agrária participaram. Delfino José Becker, outro entrevistado, falou que “o primeiro impacto da reforma agrária foi sobre aquelas pessoas que estavam passando fome, sem poder consumir o leite, sem consumir a carne. Então o primeiro impacto da reforma agrária é resolver o problema da fome”.

Celso Anghinoni também falou do grande encontro nacional de trabalhadores rurais sem-terra que aconteceu em Goiânia, no ano de 1983. Segundo ele, o encontro de Goiânia reuniu representantes de movimentos sociais de 16 estados brasileiros e que foi deste encontro que foi tirado o primeiro encontro nacional de Cascavel que se realizou em janeiro de 1984.

“E aonde a gente acabou ali em Cascavel, em 1984, não tendo mais movimentos paralelos, mas um movimento único que se chamou MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Brasil”. Em sua fala, Anghinoni nos apresenta um cenário de luta que deu origem ao movimento organizado pelos trabalhadores rurais sem-terra no Brasil. De acordo com Celso Anghinoni, foi a partir do encontro unificado do MST em Cascavel do ano de 1984 que se organizou uma forma de encaminhar as negociações, de fazer a inscrição dos sem-terra e de encaminhar as reivindicações às autoridades. Segundo o assentado: “Mas logo vimos que isso não bastava, foi necessário organizar os acampamentos. Mais tarde a gente viu que os acampamentos também não sensibilizavam as autoridades que deixavam o povo acampado sofrendo na beira das estradas. Foi onde que se resolveu ocupar as propriedades improdutivas”.

A luta do MST pela terra durante a década de 1980 e a ocupação da propriedade improdutiva forjou a criação de uma legislação própria para a Reforma Agrária. A Constituição Federal de 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988, em seu Art. 184, diz que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social [...]”. Ao passo que o artigo 186 diz que a função social da terra é quando a propriedade rural atende aos seguintes requisitos: “I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988).

Na percepção de Celso Anghinoni “a terra cumpre sua função social quando simultaneamente ela é produtiva, respeita o meio ambiente e os direitos trabalhistas”. Neste sentido, disse ele que na época das ocupações, “muitas áreas não cumpriam esses requisitos, por isso foram desapropriadas”. Ainda segundo o assentado: “se não tem ocupação, os proprietários, os fazendeiros e a própria justiça, maquiam muito a questão. Então a ocupação é uma forma do movimento forçar a desapropriação”.

O Assentamento Rural Pontal Tigre teve início em 1986 pela ocupação dos moradores do assentamento de “boias-frias” formado pela ADECON e em 26 de junho de 1988 com a chegada dos grupos integrantes do MST em Querência do Norte. Sua consolidação deu-se a partir de 22 de outubro de 1995 com a imissão de posse aos assentados. Em sua dissertação de mestrado, O MST em Querência do Norte – PR: da luta pela terra à luta na terra (2004), Sergio Gonçalves ao explicar a formação do Assentamento Rural Pontal do Tigre, aborda a criação da ADECON que surgiu no ano de 1983. De acordo com o autor, a prefeitura do Município foi intermediária no arrendamento de uma grande área de terras da Fazenda Pontal do Tigre junto ao proprietário Rudney Atalla. Neste caso, cerca de 300 famílias residentes em Querência do Norte preencheram as fichas respondendo a um questionário socioeconômico elaborado pela prefeitura e após a seleção inicial e os trâmites legais, 78 delas receberam os lotes prometidos, ocupando juntas 178,46 alqueires de terra dos 484,71 alqueires cedidos pelo grupo Atalla para arrendamento. Também ficou estabelecido que, no final da vigência de cinco anos do arrendamento, ou seja, em 1988, os fazendeiros receberiam de volta uma terra beneficiada, cuidada, com alto valor de mercado. Desta forma, o arrendamento mascarava a improdutividade da fazenda do grupo Atalla, o qual, teria sido por fim o maior beneficiado se não fosse o processo de desapropriação iniciado em 1986 para a finalidade de reforma agrária (2004, p. 134-135).

    Porém, o Assentamento Rural Pontal do Tigre não é homogêneo, encontra-se dividido em vários grupos de trabalhadores rurais sem-terra. Essa divisão foi ocorrendo de acordo com a procedência de seus integrantes. Os moradores Maria Julia da Silva, Clarina Borges Menegassi, Luzia Conceição Voss de Lima e José Edilson de Lima (esposo da última), entrevistados no dia 20 de janeiro de 2020, explicaram o motivo pelo qual o Assentamento Rural Pontal do Tigre é constituído por vários grupos, como: Adecon, Castro, Reserva, Capanema e Amaporã. Segundo eles, o significado dos nomes escolhidos vem do local de origem de cada grupo. Portanto, Maria Julia da Silva faz parte do grupo Amaporã que tem esse nome porque veio do município de Amaporã. Ao passo que Clarina Borges Menegassi faz parte do grupo “Reserva” porque veio da cidade de Reserva. E, por fim, o casal Luzia Conceição Voss de Lima e José Edilson de Lima, pertence ao grupo Adecon - Associação de Desenvolvimento Comunitário de Querência do Norte que arrendava terras da Fazenda Pontal do Tigre.

 

“A terra como profissão”

 

Ao ser perguntado quais foram às primeiras dificuldades encontradas no Assentamento Rural Pontal do Tigre, Anghinoni respondeu que encontrou dificuldades de todas as formas, mas a maior delas, “foi a própria rejeição da sociedade à causa do MST”. O mesmo ainda acrescentou: “vivemos em um país onde a elite não aceita a ascensão do pobre e, por isso, ela cria vários obstáculos para criminalizar quando o pobre começa a se organizar. Com tantas coisas boas que a reforma agrária trouxe para a região, mas a mídia a serviço da elite procura sempre ensinar o povo a nos odiar”.

Ao falar da imprensa, Celso Anghinoni relatou a experiência que os assentados tiveram há 24 anos atrás, na data de 17 de maio de 1996, quando foi a desapropriação da Fazenda Monte Azul, propriedade de Jorge Saad, também dono do grupo Bandeirantes de rádio e televisão. Anghinoni disse que este grupo comprou a área e ficou com ela por quatorze anos sem nenhum registro algum de atividade econômica, não tinha recibo de pagamento de imposto, “inclusive não tinha nem registro de empregados”, descumprindo formalmente a função social da propriedade da terra, segundo a Constituição. Por isso, sua área foi desapropriada para finalidade de reforma agrária. “Ela foi ocupada porque já estava desapropriada”, enfatizou o assentado. Porém, no dia da ocupação, logo de manhã, o MST reuniu-se com a família que cuidava da área. “Foi uma reunião amistosa, na qual ficou acordado que não aconteceria nada com ela”, concluiu o morador.

No mesmo dia da reunião (17 de maio de 1996) no período da tarde, um repórter da Rede Globo, em conluio com o administrador da fazenda, fez uma reportagem muito tendenciosa, criminalizando o movimento. De acordo com Anghinoni a reportagem fez um teatro: “a mulher da casa que de manhã havia participado da reunião com o MST toda elegante, depois na frente das câmeras ela se apresentou com o vestido rasgado na altura da barriga para mostrar que estava grávida e descabelou-se toda. Aos gritos a mulher falava que os funcionários da fazenda estavam presos e de que todos, inclusive crianças, foram agredidas pelos integrantes do MST”. Ainda de acordo com o assentado, a Rede Globo colocou toda a sociedade contra o MST: “quer dizer, fez uma encenação para criminalizar e não falou que a área foi desapropriada porque era improdutiva, que não tinha recibo de pagamento de impostos, que não tinha notas de entrada e saída”. Enfim: “a sociedade foi ensinada a nos odiar”, concluiu o assentado.

Em outro momento, Anghinoni disse que mesmo os ocupantes da Fazenda Monte Azul tendo apresentado à reportagem da Rede Globo o decreto de desapropriação da área que havia sido emitido pelo Incra em 17 de maio de 1996, a emissora negou-se a acreditar no documento de desapropriação. O entrevistado Milton Bolson Dalla Porta disse que não dá para confiar nos meios de comunicação, “como o Celso falou, pode ter mil coisas boas do MST, mas se aparecer uma ruim é aquela que a mídia vai divulgar. Então os meios de comunicação estão do lado dos poderosos”.

Outra notícia difamatória criada pela imprensa sobre o MST, segundo os assentados, é a de que os sem-terra invadem para depois vender a terra. Dalla Porta disse que “é uma mentira que plantaram para a sociedade não gostar de nós”. Há casos de alguns ocupantes que lutam e depois no final desistem por diversos problemas, muitos dos quais relacionados às más condições do acampamento. No geral, concluiu Anghinoni: “o povo que entra na luta pela terra, que vem acampar, é porque tem vontade de trabalhar e sabe que tem a terra como profissão”.

Ao ser perguntado quais foram as primeiras dificuldades encontradas no acampamento, Delfino José Becker, outro assentado, respondeu que foi o choque cultural gerado pela incompreensão do povo de Querência do Norte com a presença dos sem-terra no município. Segundo Becker, “medo do novo”. Mas disse também que com o passar do tempo a comunidade compreendeu aos poucos que com o MST cresceria o número de habitantes em Querência do Norte, mais gente para comprar no comércio e movimentar a economia local.

Aos poucos os sem-terra foram conquistando a confiança do povo do lugar e superando a rejeição que havia, disse Becker: “e a gente foi participando do comércio, das questões culturais. Fizemos uma caminhada junto com o padre Chico. Na chegada à cidade, ele falou – ‘ó, nós estamos chegando à cidade’ - daí começamos a rezar o Pai Nosso, a Ave Maria [...]. No mesmo dia fizemos uma confraternização na praça”.

Ainda de acordo com Delfino José Becker, no início, o comércio ficou fechado, “pois os comerciantes acharam que seus estabelecimentos seriam saqueados”. Mas, depois da celebração da missa e da confraternização, disse que esses eventos ajudaram o MST a conquistar as pessoas do lugar, as pessoas viram que os sem-terra eram amistosos e com o tempo foi melhorando a nossa relação com a comunidade. “Hoje” - disse ele: - “o Assentamento Rural Pontal do Tigre faz parte de Querência do Norte, muitos jovens daqui são casados com jovens da área urbana. Outros daqui foram morar ou trabalhar na cidade. Com isso, a integração do assentamento com a cidade já está consolidada”. Além do choque cultural entre a população local e os integrantes do MST, Becker assinala que houve também divergências dentro do Assentamento Rural Pontal do Tigre. “Mesmo sendo o objetivo um só, a reforma agrária, cada grupo veio por um caminho diferente”, disse ele, “teve o grupo da ADECON, que já era formado por querencianos que pagavam arrendamento para a Fazenda Pontal do Tigre. Esse grupo foi o primeiro a ser assentado no munícipio de Querência do Norte. Eram “boias-frias” que foram assentados pela prefeitura do município no ano de 1986. O grupo do Celso Anghinoni começou em Castro-PR. Tem o grupo Amaporã, que veio incentivado pelos padres da Comissão Pastoral da Terras de Paranavaí - CPT. Há também o grupo Capanema, cujos integrantes vieram da cidade de Capanema. Então, estes grupos vieram por caminhos diferentes – disse ele – “mas com o único objetivo que era a reforma agrária”. Então, houve muitas divergências no começo, mas aos poucos os grupos foram se entendendo e superando.

    Outra divergência entre os grupos foi em relação à escola, uma vez que cada grupo tinha a sua própria escola, disse Becker: “e aí a gente começou a conversar porque não ter uma escola centralizada”. Para o MST, a necessidade de haver escolas e de garantir a educação é uma preocupação em todo o Brasil. Sua luta pela democratização do conhecimento é considerada tão importante quanto a reforma agrária. Desta maneira, é válido acentuar o modelo educacional promovido pelas escolas do assentamento, denominadas Chico Mendes (municipal) e Centrão (estadual) que é diferente das escolas comuns. Foi a partir desta constatação que os grupos tomaram a decisão em conjunto de ter um espaço educacional centralizado e, por isso, esse espaço fundado em 1995 recebeu o apelido de Centrão. Segundo Becker “foi a partir dessa mesma ideia do Centrão que temos hoje, além da escola, um posto de saúde, enfim, uma estrutura centralizada para atender todo o assentamento”.

Segundo Anghinoni, por ser uma área de acampamento, o agricultor não conseguia ter acesso aos órgãos públicos para financiar a lavoura. “Com isso, não havia recursos para nada, nem mesmo para o transporte ou alimentação. Eu não tenho vergonha de dizer que ia e voltava a pé da cidade sem trazer uma farinha”. Disse também que foram 10 longos anos acampado com a família para receber seu título de concessão de uso da terra e que nesse período não chegou a passar forme “porque em cima da terra nós plantávamos batata-doce, mandioca, criava porco, galinha, tinha uma vaquinha de leite”. Mas, nos primeiros anos de acampamento: “Cheguei a ficar com a mesma camisa três anos sem poder trocar [...]. Hoje, para conquistar a terra a gente tem que desafiar e querer mesmo”, concluiu Anghinoni.

Dalla Porta, outro entrevistado, se lembra também das dificuldades enfrentadas pelo grupo na época do acampamento. Segundo o assentado, o acampamento marcou muito sua vida, afinal foram dez anos de luta para regularizar ou para transformar o acampamento em assentamento. Dalla Porta também se lembrou de como a terra foi dividida entre os acampados: “Então ali a gente tinha dividido os espaços assim: cada família que estava lá poderia plantar um pedaço para o sustento e para ir vivendo ali no acampamento”. Em seguida, ele se lembrou da alegria dos filhos com as primeiras colheitas: “Então os primeiros plantios que a gente fez, o meu filho mesmo falava: ‘olha pai já está dando fruta, já está dando melancia, já está tendo melão, está tendo mandioca para arrancar’. Assim, a mandioca produzindo, a verdura na horta [...]. Isso marcou muito a gente. ‘Ô pai, olha já temos comida para nós comermos’, dizia um dos filhos. Dalla Porta se emociona ao falar que “eu mesmo nunca passei fome, mas outras famílias que eram mais humildes, mais pobres, chegavam até passar necessidade”.

Dalla Porta disse que mesmo depois da emissão de posse em 1995 “para poder produzir havia toda uma dificuldade para comprar implementos, máquinas e insumos”. E para tanto é necessário ter apoio do governo e para ter apoio tem que ter mobilização, pressão. O assentado se lembrou da grande marcha para Curitiba que se iniciou no dia 23 de setembro de 1997 em Querência do Norte e durou 24 dias. Essa marcha foi denominada pelo movimento de Marcha pela Liberdade dos Sem-Terra, pelo Emprego e pela Reforma Agrária. Dalla Porta disse que: “[...] caminhamos pelas estradas daqui a Curitiba, [...]. Chegamos a dormir na beira de estrada”. E assevera: “isso faz parte da luta, quem fez isso valoriza seu espaço, valoriza porque botou o pé no chão”. Dalla Porta também acrescenta que durante a marcha as pessoas tiveram que “comer às vezes arroz queimado lá do fundo da panela – que era a panela grande para cozinhar para 200 pessoas para comer todas andando” com o objetivo de ir lá para Curitiba pressionar o governo na negociação. “Naquela época era o governo de Jaime Lerner, um governo de direita, e estava querendo derrotar o movimento”.

Ao falar das lideranças do MST em Querência do Norte, Dalla Porta disse que seu companheiro Celso Anghinoni “é muito admirado porque defende a luta. Foi perseguido e até ameaçado de morte. Não conseguiram matar o Celso, mas mataram por engano o irmão dele”. Trata-se do assassinato de Eduardo Anghinoni, irmão do entrevistado Celso Anghinoni. De acordo com matéria do jornalista, Maurício Hashizume, publicada no dia 02 de agosto de 2011 pelo jornal Repórter Brasil, o atentado ocorreu em 29 de março de 1999, quando por volta das 22h00min, o assassino, Jair Firmino Borracha, se dirigiu à residência de Celso Anghinoni, e, juntamente com outros dois elementos não identificados, desferiu tiros contra a vítima causando a morte de Eduardo. No momento do crime a vítima estava assistindo televisão na residência de Celso Anghinoni, para o qual fazia uma visita e não tinha nada com o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. O pistoleiro Jair Firmino Borracha executava serviços para latifundiários e para a UDR - União Democrática Ruralista - da região Noroeste do Paraná. Organização esta que contrata pistoleiros ou jagunços como “seguranças” das fazendas com o objetivo de impedir as manifestações dos trabalhadores rurais sem-terra. O desfecho do caso se deu em 26 de julho de 2011, quando Jair Firmino Borracha foi condenado a 15 anos de prisão em regime fechado (HASHIZUME, 2011).

 

As conquistas dos assentados

 

Desde seu auto de imissão de posse em 22 de outubro de 1995, o Assentamento Rural Pontal do Tigre, vem ajudando a potencializar a economia do município de Querência do Norte, com a produção de diversos produtos como arroz polido e integral, e derivados de leite como queijos mussarela, nozinho, palito, trancinha de provolone, manteiga, leite empacotado e iogurte, que são alguns dos produtos agro-industrializados e comercializados pela COANA (Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária Avante Ltda.). A COANA foi fundada pelos assentados em 1995 e, atualmente, possui 852 cooperados.

É importante ressaltar que atualmente o município de Querência do Norte é conhecido como a capital do arroz irrigado do Paraná por conta da produção irrigada em suas terras. No Assentamento Rural Pontal do Tigre a plantação é realizada em áreas de alagamento controlado ou de várzeas e é justamente a irrigação que garante o desenvolvimento dos cachos de arroz. Após a colheita, esse arroz sai empacotado da agroindústria, com o detalhe de que o plantio feito pelos assentados é sem agrotóxicos. Para além da cooperativa, os agricultores também criam porcos, galinhas, cabras e plantam diversos alimentos como mandioca, batata, feijão e hortifrutigranjeiros.

Também foi uma conquista do movimento dos sem-terra o projeto político pedagógico voltado para a educação no campo. Em 2016, o Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, publicado por representantes do movimento durante o 2° Encontro Nacional de Educadores e Educadores da Reforma Agrária - Enera, a escola do campo passou a ter como objetivo educar as crianças assentadas de acordo com os princípios políticos e sociais do movimento, ou seja, construir uma “pedagogia socialista”.

    Em Querência do Norte, por exemplo, os filhos dos moradores do assentamento têm aulas de disciplinas “práticas agrícolas” e “ambientais” em que visitam as plantações e aulas sobre conteúdo de “cultura camponesa”. Também o calendário escolar leva em conta as datas comemorativas da rede, mas também considera as datas que são significativas para o MST.

O entrevistado Milton Bolson Dalla Porta enalteceu o projeto político pedagógico da escola, disse que “tem coisas que são ensinadas pelos professores da escola do assentamento que não se ensina na escola da cidade, porque a gente quer que as crianças que moram no assentamento tenham conhecimento de mais coisas, de política”. A respeito do material escolar, Dalla Porta disse que as editoras que produzem os livros didáticos para as escolas “ensinam aquilo que é conveniente para a elite, para a burguesia”. Em seguida, deu seu conceito de burguesia: “quando eu falo ‘burguesia’, são aquelas pessoas que não conseguem gastar todo o dinheiro que ganha”. Isso, segundo ele: “também não é digno”. De acordo com Dalla Porta: “o movimento é uma bandeira de luta pela dignidade e que se conquista com a igualdade. Eu tenho que querer o que é bom para o meu irmão, para o meu vizinho, para a criança do vizinho. Tem que ser socializado”! Explicou.

No entanto, depois de passados 30 anos de ocupação e 23 anos de desapropriação da terra, os antigos proprietários que compunham o grupo Atalla entraram na justiça em 2014 com uma ação de reintegração de posse. De acordo com Celso Anghinoni, isto nos permitiu entrar na justiça com pedido de usucapião. Numa das assembleias, decidimos fazer um levantamento geográfico dos nossos lotes, porque o documento que temos de concessão de uso não determina o tamanho do lote de cada um. Para poder entrar com pedido de uso campeão tem que ter este mapa descritivo, a maioria já fez e encaminhou ao advogado para dar entrada ao pedido de usucapião. Agora estamos no aguardo para ver o desfecho disso”.

Porém essa ação de reintegração de posse de 2014 tem amedrontado alguns moradores do Assentamento Rural Pontal do Tigre, como nos revelou a moradora Luzia Conceição Voss de Lima ao questionar: “Será que eles não pensam no tanto de família que tem aqui dentro? Não imaginam que todo mundo já casou, criou os filhos, tem netos e que todos são frutos dessa terra”? Outra moradora, Clarina Borges Menegassi, explicou que o assentamento corre o risco de reintegração de posse por conta de um procedimento mal administrado pelo INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Ela explicou que “quando foi decretado o assentamento em 1995, a Constituição dava direito ao fazendeiro a 25% da área e dentro dessa área imaginava-se que era a do Centrão e do assentamento Capanema, mas daí teve toda essa discussão, virou assentamento, mas, depois o INCRA não pagou, porque o grupo Atalla pediu um valor muito alto [...]. Aí tinha um período para recorrer da decisão e o INCRA não recorreu, mas o grupo Atalla recorreu”. De acordo com Celso Anghinoni “o grupo Atalla pediu ao INCRA uma indenização de 539 milhões, um valor muito acima do valor do que vale esta área hoje”.

A entrevistada Clarina Borges Menegassi relatou que aconteceu uma assembleia em 31 de agosto de 2018, entre os moradores do assentamento e os advogados do grupo mega-latifundiário Atalla e disse que “nós não éramos mais assentados e nem acampados. A gente já não sabia mais o que a gente era. Então, são mais de 30 anos que o pessoal está aqui em cima. É uma vida. Depois de tudo o que foi construído [...]. E agora, o que fazer”? No entanto, os advogados deixaram claro que “o grupo Atalla não tem interesse na área, mas ele quer a indenização, ele quer o dinheiro”. Foi o que tranquilizou um pouco os moradores. De acordo com Celso Anghinoni, a assembleia deste dia 31 de agosto de 2018, contou com a presença massiva dos assentados, do juiz da Vara da Justiça Federal de Umuarama, dos advogados e peritos do grupo Atalla, dos peritos da Justiça Federal e dos funcionários do INCRA. “Esta assembleia aconteceu aqui na data citada para esclarecer toda a comunidade assentada que não se tratava de pedido de reintegração de posse, mas sim um levantamento da área total existente e quanto da área estava sendo ocupada com alguma cultura desde o tempo em que ela foi ocupada”, concluiu Anghinoni.

Delfino também discorreu a respeito da atual conjuntura em que os assentamentos rurais estão ameaçados de despejos e lamentou: “Como agora nós estamos pertinho do natal (2019) até lembro que na noite de natal de 1989, a gente passou fazendo mudança de uma área para outra para evitar um despejo. E depois de passados 30 anos, novamente a gente está de novo sob ameaça de despejo [...]. Na semana passada teve um despejo na São Francisco e em Querência do Norte ainda tem outras áreas ameaçadas. Tomara que este natal seja de paz! A gente está nessa perspectiva”. O despejo mais recente aconteceu em 3 de dezembro de 2019 no acampamento Companheiro Sétimo Garibaldi, o que afeta e assombra todos os integrantes dos 10 assentamentos do município, pois o objetivo de todos é um só, continuar na terra e consolidar o processo de reforma agrária. 


FONTES (ENTREVISTAS)

 

Entrevista realizada no dia 15 de dezembro de 2019 por Mariana de Barros Augusto com Celso Anghinoni, Delfino José Becker e Milton Bolson Dalla Porta, moradores do Assentamento Rural Pontal do Tigre, em Querência do Norte-PR.

Entrevista realizada por Mariana de Barros Augusto no dia 21 de janeiro de 2020 com Maria Júlia da Silva, Clarina Borges Menegassi, Luzia Conceição Voss de Lima e com José Edilson de Lima moradores do Assentamento Rural Pontal do Tigre, em Querência do Norte-PR.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AMBONI, Vanderlei. A Escola no Acampamento do MST: Institucionalização e Gestão Estatal da Escola Itinerante Carlos Marighella. 2014. 255 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos – SP, 2014.

FABRINI, João Edmilson; ROOS, Djoni; MARQUES, Erwin Becker; GONÇALVES, Leandro Daneluz. Lutas e resistências no campo paranaense e o projeto Dataluta-PR. Presidente Prudente: Revista NERA (Unesp), Ano 15, n. 21, julho-dez. 2012.

GONÇALVES, Sérgio. O MST em Querência do Norte-PR: da luta pela terra à luta na terra. Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Estadual de Maringá, 2004.

HARACENKO, Adélia Aparecida de Souza. A Reforma Agrária como uma nova forma de ocupação do Noroeste do Estado do Paraná. Anais do III Simpósio Nacional de Geografia Agrária – II Simpósio Internacional de Geografia Agrária Jornada Ariovaldo Umbelino de Oliveira – Presidente Prudente, 11 a 15 de novembro de 2005. Disponível em: http://www2.fct.unesp.br/nera/publicacoes/singa2005/Trabalhos/Artigos/Ad%E9lia%20Aparecida%20de%20Souza%20Haracenko.pdf.

HARACENKO, Adélia Aparecida de Souza. O Processo de Transformação do Território no Noroeste do Paraná e a Construção das Novas Territorialidades Camponesas. 2007. 627 f. Tese (Doutorado em Geografia). USP - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

HASHIZUME, Maurício. Acusado de matar sem-terra é condenado no Paraná. Repórter Brasil. Brasília, 02 de agosto de 2011. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2011/08/acusado-de-matar-sem-terra-e-condenado-no-parana/. Acesso em 14 de julho de 2020.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra). Brasília-DF: Palácio do Planalto. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação, 1970. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4504-30-novembro-1964-377628-normaatualizada-pl.pdf. Acesso em 17/07/2020.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição Federal. Brasília-DF: Palácio do Planalto. Presidência da República, Casa Civil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 28 de maio de 2020.

 


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