Para compreender o processo de [re]ocupação da terra em Querência Norte pelo MST se faz necessário entender antes de tudo o processo de colonização da região Noroeste do Paraná que deu origem ao município. A colonização da região foi oficializada em 1944 com a instalação da Colônia Paranavaí pelo interventor Manoel Ribas durante a política federal de colonização do Estado Novo de Vargas (1937-1945) para as áreas de fronteira agrícola do país, denominada “Marcha para Oeste”.
Querência do Norte foi fundada em
1950, quando Carlos Antonio Franchelo e Ângelo Bortolli organizaram em
Londrina, Norte do Estado, a empresa colonizadora BRAPA - Companhia
Brasil-Paraná Loteamentos S.A. para lotear as Glebas 27, 27-A, 28 e 29 da
Colônia Paranavaí. Em 26 de novembro de 1954, pela Lei Estadual nº 253, foi
criado o município de Querência do Norte com território desmembrado de
Paranavaí e sua instalação oficial deu-se em 5 de dezembro de 1955 com a posse
do primeiro prefeito eleito, Ozório Ferreira Lemos. O município encontra-se
situado no Extremo Noroeste do estado do Paraná na divisa com o estado de Mato
Grosso do Sul, na confluência do rio Ivaí com o rio Paraná. Além do distrito
sede, o município possui ainda dois distritos administrativos: Icatu e Porto
Brasilio; e mais duas localidades: Porto Felício e Porto Natal.
Como Carlos Antonio Franchelo e
Ângelo Bortolli, donos da colonizadora BRAPA, adquiriram as glebas 27, 27-A, 28
e 29 da Colônia Paranavaí para colonização, Adélia Aparecida de Souza
Haracenko, em sua tese de doutorado “O
Processo de Transformação do Noroeste do Paraná e a Construção das Novas
Territorialidades Camponesas” (2007), explica que as glebas foram doações
do então governador Moysés Lupion a seus “amigos” em troca de apoio político. O
primeiro agraciado neste caso foi o libanês Salim Sayão que era muito próximo
do governador e que depois vendeu as terras para Carlos Antonio Franchelo e
Ângelo Bortolli (2007, p. 275).
Ao colonizar Querência do Norte, Antonio Franchelo e Ângelo Bortolli realizaram intensa propaganda no estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de atrair o interesse de famílias gaúchas para comprar as terras. Por isso, o nome do município foi dado pelos colonizadores em homenagem aos pioneiros provindos daquele Estado. Porém, a localidade também recebeu migrantes de outras regiões do país, principalmente do Nordeste. De acordo com Haracenko “durante o período da colonização a grilagem e a violência contra posseiros foram marcantes naquele município” (2007, p. 276). A autora constatou ainda que um dos métodos mais utilizados pelos grileiros para expulsar os posseiros, foi o despejo. O gaúcho Santo José Borsatto entrevistado por Haracenko em 2007, falou de um grande despejo de mais de trezentas famílias de posseiros que ocorreu em 1968, na então Gleba 29, atual município de Querência do Norte. Segundo o pioneiro:
A Gleba 29 tinha bastante posseiro,
que era toda a margem do rio Paraná, do Ivaí até o município de Monte Castelo,
era reserva do Estado. [...] Terra boa, tinha muita várzea, [...]. A Gleba 29,
o Moysés Lupion deu título para o Felício Jorge, mas o Felício Jorge só pegava
se tirasse todo mundo [...], trezentas e tantas famílias. Não sei a lábia que
tiveram. Iludiram o povo que eles iam dar uma terra melhor que a 29, levaram
para a Transamazônica em [19]68. O Felício Jorge começou a transplantar o gado,
aí durando poucos anos pegou e vendeu para o grupo Atalla. Depois de certo
tempo para cá a gente ficou sabendo que o grupo Atalla tinha tirado dinheiro do
Banestado para comprar essa terra, na época falavam em 36 milhões. Como o grupo
Atalla [...] até hoje não pagou essa dívida, [...], foi o que trouxe os
sem-terra para Querência do Norte (BORSATTO, Apud. HARACENKO, 2007, p. 281-282).
Com a passagem da entrevista acima,
Haracenko apresenta um cenário de luta pela posse da terra na região Noroeste
do Paraná durante sua colonização e que mais tarde, no final da década de 1980
e início da década de 1990, deu lugar ao movimento de retorno organizado pelos
trabalhadores rurais sem-terra para compor o Assentamento Rural Pontal do Tigre
de Querência do Norte, além de muitos outros assentamentos que surgiram na
região. Atualmente o Extremo Noroeste do Paraná conta com o maior número de
assentamentos rurais do MST de todo o Estado. Além do Pontal do Tigre, o
próprio município de Querência do Norte possui ainda outros nove assentamentos,
sendo eles: Che Guevara, Chico Mendes, Fazenda Santana, Irmã Dorothy, Luiz
Carlos Prestes, Margarida Alves, Sebastião da Maia, Zumbi dos Palmares e
Antonio Tavares Pereira. Em Marilena, município próximo reúne mais três
assentamentos rurais: Sebastião Camargo, Quatro Irmãos e Santo Ângelo. Em Santa
Cruz de Monte Castelo, cidade ao lado, existem outros quatro assentamentos: 17
de abril, Oziel Alves Pereira, Teixeirinha e Paraná.
Origem
e atuação do MST em Querência do Norte
De acordo com Vanderlei Amboni, em
sua tese de doutorado A Escola no
Acampamento do MST: Institucionalização e Gestão Estatal da Escola Itinerante
Carlos Marighella (2014), o MST se originou de lutas pela
reforma agrária “[...] que foram desencadeadas no Brasil na data de 07 de
setembro de 1979 com as ocupações das fazendas Macali e Brilhante, em Ronda
Alta, no Rio Grande do Sul [...]” (2014, p. 51). Ainda segundo Amboni, o MST
“teve como marco inicial o encontro realizado em janeiro de 1984, na cidade de
Cascavel, no Paraná” (2014, p. 53).
O encontro de Cascavel reuniu vários
grupos de agricultores sem-terra de todo o Brasil e, particularmente do Oeste
do Paraná, região do Estado em que o movimento era bastante atuante já no
início da década de 1980. Ao ser entrevistado, em 15 de dezembro de 2019, o
morador do Assentamento Rural Pontal do Tigre e um dos líderes do MST na
região, Celso Anghinoni, disse que “quando teve a desapropriação das terras que
foram inundadas pela hidrelétrica de Itaipu as famílias que eram donas das
propriedades foram indenizadas, mas não as famílias dos que trabalhavam nas
propriedades, tais como dos meeiros, parceiros, arrendatários entres outros”.
De acordo com Adélia Aparecida de Souza Haracenko em seu artigo O Processo de Transformação do Território no Noroeste Do Paraná e a Construção das Novas Territorialidades Camponesas: “Toda a mobilização dos desapossados resultou no Movimento Justiça e Terra - MJT, que foi o germe do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O vínculo do MJT com o MST se explica porque o primeiro foi, a partir de 1980 o embrião das lutas camponesas organizadas no Paraná” (2005, p. 01).
De acordo com Fabrini, Roos, Marques
e Gonçalves (2012), “em 1981 os agricultores sem-terra do Oeste do Estado
organizaram o Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Oeste do Paraná (MASTRO)
que inspirou o surgimento de vários movimentos de sem-terra em outras regiões
do Estado” (2012, p. 35).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) nasceu oficialmente em 1984, no 1º Encontro Nacional do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ocorrido em Cascavel, no Paraná,
entre os dias 20 e 22 de janeiro, tendo a participação e o apoio da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e de alguns sindicatos de trabalhadores rurais,
herdeiros de lutas pela terra no Brasil.
Ainda segundo Anghinoni, o Estatuto
da Terra, Lei Federal 4.504, criada pelo governo militar em 30 de novembro de
1964 em seu Art. 1° que regula
os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de
execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola, “foi extremamente
importante para instrumentalizar o movimento pela reforma agrária a partir do
início da década de 1980”. De acordo com o Estatuto da Terra – disse Anghinoni
– “em uma área ou região em que há concentração de trabalhadores rurais
querendo terra em que a área é improdutiva, pode ser desapropriada. Foi assim
que nasceram esses movimentos sociais, inclusive a MASTRO, da qual eu fiz
parte”. Disse também que participou do 1º
Seminário Latino-Americano das Experiências de Reforma Agrária em Brasília,
no qual vários outros países que já tinham realizado a reforma agrária
participaram. Delfino José Becker, outro entrevistado, falou que “o primeiro
impacto da reforma agrária foi sobre aquelas pessoas que estavam passando fome,
sem poder consumir o leite, sem consumir a carne. Então o primeiro impacto da
reforma agrária é resolver o problema da fome”.
Celso Anghinoni também falou do
grande encontro nacional de trabalhadores rurais sem-terra que aconteceu em
Goiânia, no ano de 1983. Segundo ele, o encontro de Goiânia reuniu
representantes de movimentos sociais de 16 estados brasileiros e que foi deste
encontro que foi tirado o primeiro encontro nacional de Cascavel que se
realizou em janeiro de 1984.
“E aonde a gente acabou ali em
Cascavel, em 1984, não tendo mais movimentos paralelos, mas um movimento único
que se chamou MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Brasil”. Em
sua fala, Anghinoni nos apresenta um cenário de luta que deu origem ao
movimento organizado pelos trabalhadores rurais sem-terra no Brasil. De acordo
com Celso Anghinoni, foi a partir do encontro unificado do MST em Cascavel do
ano de 1984 que se organizou uma forma de encaminhar as negociações, de fazer a
inscrição dos sem-terra e de encaminhar as reivindicações às autoridades.
Segundo o assentado: “Mas logo vimos que isso não bastava, foi necessário
organizar os acampamentos. Mais tarde a gente viu que os acampamentos também
não sensibilizavam as autoridades que deixavam o povo acampado sofrendo na
beira das estradas. Foi onde que se resolveu ocupar as propriedades
improdutivas”.
A luta do MST pela terra durante a
década de 1980 e a ocupação da propriedade improdutiva forjou a criação de uma
legislação própria para a Reforma Agrária. A Constituição Federal de 1988,
promulgada em 5 de outubro de 1988,
em seu Art. 184, diz que “compete à União desapropriar por interesse social,
para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua
função social [...]”. Ao passo que o artigo 186 diz que a função social da terra
é quando a propriedade rural atende aos seguintes requisitos: “I -
aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL, 1988).
Na percepção de Celso Anghinoni “a
terra cumpre sua função social quando simultaneamente ela é produtiva, respeita
o meio ambiente e os direitos trabalhistas”. Neste sentido, disse ele que na
época das ocupações, “muitas áreas não cumpriam esses requisitos, por isso
foram desapropriadas”. Ainda segundo o assentado: “se não tem ocupação, os
proprietários, os fazendeiros e a própria justiça, maquiam muito a questão.
Então a ocupação é uma forma do movimento forçar a desapropriação”.
O
Assentamento Rural Pontal Tigre teve início em 1986 pela ocupação dos moradores
do assentamento de “boias-frias” formado pela ADECON e em 26 de junho de 1988
com a chegada dos grupos integrantes do MST em Querência do Norte. Sua
consolidação deu-se a partir de 22 de outubro de 1995 com a imissão de posse
aos assentados. Em sua dissertação de mestrado, O MST em Querência do Norte – PR: da luta pela terra à luta na terra (2004), Sergio Gonçalves ao explicar
a formação do Assentamento Rural Pontal do Tigre, aborda a criação da ADECON
que surgiu no ano de 1983. De acordo com o autor, a prefeitura do Município foi
intermediária no arrendamento de uma grande área de terras da Fazenda Pontal do
Tigre junto ao proprietário Rudney Atalla. Neste caso, cerca de 300 famílias
residentes em Querência do Norte preencheram as fichas respondendo a um
questionário socioeconômico elaborado pela prefeitura e após a seleção inicial
e os trâmites legais, 78 delas receberam os lotes prometidos, ocupando juntas
178,46 alqueires de terra dos 484,71 alqueires cedidos pelo grupo Atalla para
arrendamento. Também ficou estabelecido que, no final da vigência de cinco anos
do arrendamento, ou seja, em 1988, os fazendeiros receberiam de volta uma terra
beneficiada, cuidada, com alto valor de mercado. Desta forma, o arrendamento
mascarava a improdutividade da fazenda do grupo Atalla, o qual, teria sido por
fim o maior beneficiado se não fosse o processo de desapropriação iniciado em
1986 para a finalidade de reforma agrária (2004, p. 134-135).
“A terra como profissão”
Ao
ser perguntado quais foram às primeiras dificuldades encontradas no
Assentamento Rural Pontal do Tigre, Anghinoni respondeu que encontrou
dificuldades de todas as formas, mas a maior delas, “foi a própria rejeição da
sociedade à causa do MST”. O mesmo ainda acrescentou: “vivemos em um país onde
a elite não aceita a ascensão do pobre e, por isso, ela cria vários obstáculos
para criminalizar quando o pobre começa a se organizar. Com tantas coisas boas
que a reforma agrária trouxe para a região, mas a mídia a serviço da elite
procura sempre ensinar o povo a nos odiar”.
Ao
falar da imprensa, Celso Anghinoni relatou a experiência que os assentados
tiveram há 24 anos atrás, na data de 17 de maio de 1996, quando foi a
desapropriação da Fazenda Monte Azul, propriedade de Jorge Saad, também dono do
grupo Bandeirantes de rádio e televisão. Anghinoni disse que este grupo comprou
a área e ficou com ela por quatorze anos sem nenhum registro algum de atividade
econômica, não tinha recibo de pagamento de imposto, “inclusive não tinha nem
registro de empregados”, descumprindo formalmente a função social da
propriedade da terra, segundo a Constituição. Por isso, sua área foi
desapropriada para finalidade de reforma agrária. “Ela foi ocupada porque já
estava desapropriada”, enfatizou o assentado. Porém, no dia da ocupação, logo
de manhã, o MST reuniu-se com a família que cuidava da área. “Foi uma reunião
amistosa, na qual ficou acordado que não aconteceria nada com ela”, concluiu o
morador.
No
mesmo dia da reunião (17 de maio de 1996) no período da tarde, um repórter da
Rede Globo, em conluio com o administrador da fazenda, fez uma reportagem muito
tendenciosa, criminalizando o movimento. De acordo com Anghinoni a reportagem
fez um teatro: “a mulher da casa que de manhã havia participado da reunião com
o MST toda elegante, depois na frente das câmeras ela se apresentou com o
vestido rasgado na altura da barriga para mostrar que estava grávida e
descabelou-se toda. Aos gritos a mulher falava que os funcionários da fazenda
estavam presos e de que todos, inclusive crianças, foram agredidas pelos
integrantes do MST”. Ainda de acordo com o assentado, a Rede Globo colocou toda
a sociedade contra o MST: “quer dizer, fez uma encenação para criminalizar e
não falou que a área foi desapropriada porque era improdutiva, que não tinha
recibo de pagamento de impostos, que não tinha notas de entrada e saída”.
Enfim: “a sociedade foi ensinada a nos odiar”, concluiu o assentado.
Em
outro momento, Anghinoni disse que mesmo os ocupantes da Fazenda Monte Azul
tendo apresentado à reportagem da Rede Globo o decreto de desapropriação da
área que havia sido emitido pelo Incra em 17 de maio de 1996, a emissora
negou-se a acreditar no documento de desapropriação. O entrevistado Milton
Bolson Dalla Porta disse que não dá para confiar nos meios de comunicação,
“como o Celso falou, pode ter mil coisas boas do MST, mas se aparecer uma ruim
é aquela que a mídia vai divulgar. Então os meios de comunicação estão do lado
dos poderosos”.
Outra
notícia difamatória criada pela imprensa sobre o MST, segundo os assentados, é
a de que os sem-terra invadem para depois vender a terra. Dalla Porta disse que
“é uma mentira que plantaram para a sociedade não gostar de nós”. Há casos de
alguns ocupantes que lutam e depois no final desistem por diversos problemas,
muitos dos quais relacionados às más condições do acampamento. No geral,
concluiu Anghinoni: “o povo que entra na luta pela terra, que vem acampar, é
porque tem vontade de trabalhar e sabe que tem a terra como profissão”.
Ao
ser perguntado quais foram as primeiras dificuldades encontradas no
acampamento, Delfino José Becker, outro assentado, respondeu que foi o choque
cultural gerado pela incompreensão do povo de Querência do Norte com a presença
dos sem-terra no município. Segundo Becker, “medo do novo”. Mas disse também
que com o passar do tempo a comunidade compreendeu aos poucos que com o MST
cresceria o número de habitantes em Querência do Norte, mais gente para comprar
no comércio e movimentar a economia local.
Aos
poucos os sem-terra foram conquistando a confiança do povo do lugar e superando
a rejeição que havia, disse Becker: “e a gente foi participando do comércio,
das questões culturais. Fizemos uma caminhada junto com o padre Chico. Na
chegada à cidade, ele falou – ‘ó, nós estamos chegando à cidade’ - daí
começamos a rezar o Pai Nosso, a Ave Maria [...]. No mesmo dia fizemos uma
confraternização na praça”.
Ainda
de acordo com Delfino José Becker, no início, o comércio ficou fechado, “pois
os comerciantes acharam que seus estabelecimentos seriam saqueados”. Mas,
depois da celebração da missa e da confraternização, disse que esses eventos
ajudaram o MST a conquistar as pessoas do lugar, as pessoas viram que os
sem-terra eram amistosos e com o tempo foi melhorando a nossa relação com a
comunidade. “Hoje” - disse ele: - “o Assentamento Rural Pontal do Tigre faz
parte de Querência do Norte, muitos jovens daqui são casados com jovens da área
urbana. Outros daqui foram morar ou trabalhar na cidade. Com isso, a integração
do assentamento com a cidade já está consolidada”. Além do choque cultural
entre a população local e os integrantes do MST, Becker assinala que houve
também divergências dentro do Assentamento Rural Pontal do Tigre. “Mesmo sendo
o objetivo um só, a reforma agrária, cada grupo veio por um caminho diferente”,
disse ele, “teve o grupo da ADECON, que já era formado por querencianos que
pagavam arrendamento para a Fazenda Pontal do Tigre. Esse grupo foi o primeiro
a ser assentado no munícipio de Querência do Norte. Eram “boias-frias” que foram
assentados pela prefeitura do município no ano de 1986. O grupo do Celso
Anghinoni começou em Castro-PR. Tem o grupo Amaporã, que veio incentivado pelos
padres da Comissão Pastoral da Terras de Paranavaí - CPT. Há também o grupo
Capanema, cujos integrantes vieram da cidade de Capanema. Então, estes grupos
vieram por caminhos diferentes – disse ele – “mas com o único objetivo que era
a reforma agrária”. Então, houve muitas divergências no começo, mas aos poucos
os grupos foram se entendendo e superando.
Segundo
Anghinoni, por ser uma área de acampamento, o agricultor não conseguia ter acesso aos órgãos públicos para financiar a lavoura.
“Com isso, não havia recursos para nada, nem mesmo para o transporte ou
alimentação. Eu não tenho vergonha de dizer que ia e voltava a pé da cidade sem
trazer uma farinha”. Disse também que foram 10 longos anos acampado com a
família para receber seu título de concessão de uso da terra e que nesse
período não chegou a passar forme “porque em cima da terra nós plantávamos
batata-doce, mandioca, criava porco, galinha, tinha uma vaquinha de leite”.
Mas, nos primeiros anos de acampamento: “Cheguei a ficar com a mesma camisa
três anos sem poder trocar [...]. Hoje, para conquistar a terra a gente tem que
desafiar e querer mesmo”, concluiu Anghinoni.
Dalla
Porta, outro entrevistado, se lembra também das dificuldades enfrentadas pelo
grupo na época do acampamento. Segundo o assentado, o acampamento marcou muito
sua vida, afinal foram dez anos de luta para regularizar ou para transformar o
acampamento em assentamento. Dalla Porta também se lembrou de como a terra foi
dividida entre os acampados: “Então ali a gente tinha dividido os espaços
assim: cada família que estava lá poderia plantar um pedaço para o sustento e
para ir vivendo ali no acampamento”. Em seguida, ele se lembrou da alegria dos
filhos com as primeiras colheitas: “Então os primeiros plantios que a gente
fez, o meu filho mesmo falava: ‘olha pai já está dando fruta, já está dando
melancia, já está tendo melão, está tendo mandioca para arrancar’. Assim, a
mandioca produzindo, a verdura na horta [...]. Isso marcou muito a gente. ‘Ô
pai, olha já temos comida para nós comermos’, dizia um dos filhos. Dalla Porta
se emociona ao falar que “eu mesmo nunca passei fome, mas outras famílias que
eram mais humildes, mais pobres, chegavam até passar necessidade”.
Dalla
Porta disse que mesmo depois da emissão de posse em 1995 “para poder produzir
havia toda uma dificuldade para comprar implementos, máquinas e insumos”. E
para tanto é necessário ter apoio do governo e para ter apoio tem que ter
mobilização, pressão. O assentado se lembrou da grande marcha para Curitiba que
se iniciou no dia 23 de setembro de 1997 em Querência do Norte e durou 24 dias.
Essa marcha foi denominada pelo movimento de Marcha pela Liberdade dos Sem-Terra, pelo Emprego e pela Reforma
Agrária. Dalla Porta disse que: “[...] caminhamos pelas estradas daqui a
Curitiba, [...]. Chegamos a dormir na beira de estrada”. E assevera: “isso faz
parte da luta, quem fez isso valoriza seu espaço, valoriza porque botou o pé no
chão”. Dalla Porta também acrescenta que durante a marcha as pessoas tiveram
que “comer às vezes arroz queimado lá do fundo da panela – que era a panela
grande para cozinhar para 200 pessoas para comer todas andando” com o objetivo
de ir lá para Curitiba pressionar o governo na negociação. “Naquela época era o
governo de Jaime Lerner, um governo de direita, e estava querendo derrotar o
movimento”.
Ao
falar das lideranças do MST em Querência do Norte, Dalla Porta disse que seu
companheiro Celso Anghinoni “é muito admirado porque defende a luta. Foi
perseguido e até ameaçado de morte. Não conseguiram matar o Celso, mas mataram
por engano o irmão dele”. Trata-se do assassinato de Eduardo Anghinoni, irmão
do entrevistado Celso Anghinoni. De acordo com matéria do jornalista, Maurício Hashizume,
publicada no dia 02 de agosto de 2011 pelo jornal Repórter Brasil, o
atentado ocorreu em 29 de março de 1999, quando por volta das 22h00min, o
assassino, Jair Firmino Borracha, se dirigiu à residência de Celso Anghinoni,
e, juntamente com outros dois elementos não identificados, desferiu tiros
contra a vítima causando a morte de Eduardo. No momento do crime a vítima
estava assistindo televisão na residência de Celso Anghinoni, para o qual fazia
uma visita e não tinha nada com o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra.
O pistoleiro Jair Firmino Borracha executava serviços para latifundiários e
para a UDR - União Democrática Ruralista - da região Noroeste do Paraná.
Organização esta que contrata pistoleiros ou jagunços como “seguranças” das fazendas
com o objetivo de impedir as manifestações dos trabalhadores rurais sem-terra.
O desfecho do caso se deu em 26 de julho de 2011, quando Jair Firmino Borracha
foi condenado a 15 anos de prisão em regime fechado (HASHIZUME, 2011).
As conquistas dos assentados
Desde
seu auto de imissão de posse em 22 de outubro de 1995, o Assentamento Rural
Pontal do Tigre, vem ajudando a potencializar a economia do município de
Querência do Norte, com a produção de diversos produtos como arroz polido e
integral, e derivados de leite como queijos mussarela, nozinho, palito,
trancinha de provolone, manteiga, leite empacotado e iogurte, que são alguns
dos produtos agro-industrializados e comercializados pela COANA (Cooperativa de
Comercialização e Reforma Agrária Avante Ltda.). A COANA foi fundada pelos
assentados em 1995 e, atualmente, possui 852 cooperados.
É
importante ressaltar que atualmente o município de Querência do Norte é conhecido como a capital
do arroz irrigado do Paraná por conta da produção irrigada em suas terras. No
Assentamento Rural Pontal do Tigre a plantação é realizada em áreas de
alagamento controlado ou de várzeas e é justamente a irrigação que garante o
desenvolvimento dos cachos de arroz. Após a colheita, esse arroz sai
empacotado da agroindústria, com o detalhe de que o plantio feito pelos
assentados é sem agrotóxicos. Para além da cooperativa, os agricultores também
criam porcos, galinhas, cabras e plantam diversos alimentos como mandioca,
batata, feijão e hortifrutigranjeiros.
Também
foi uma conquista do movimento dos sem-terra o projeto político pedagógico
voltado para a educação no campo. Em 2016, o Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, publicado
por representantes do movimento durante o 2°
Encontro Nacional de Educadores e Educadores da Reforma Agrária - Enera, a escola do campo passou a ter
como objetivo educar as crianças assentadas de acordo com os princípios
políticos e sociais do movimento, ou seja, construir uma “pedagogia
socialista”.
O
entrevistado Milton Bolson Dalla Porta enalteceu o projeto político pedagógico
da escola, disse que “tem coisas que são ensinadas pelos professores da escola
do assentamento que não se ensina na escola da cidade, porque a gente quer que
as crianças que moram no assentamento tenham conhecimento de mais coisas, de
política”. A respeito do material escolar, Dalla Porta disse que as editoras
que produzem os livros didáticos para as escolas “ensinam aquilo que é
conveniente para a elite, para a burguesia”. Em seguida, deu seu conceito de
burguesia: “quando eu falo ‘burguesia’, são aquelas pessoas que não conseguem
gastar todo o dinheiro que ganha”. Isso, segundo ele: “também não é digno”. De
acordo com Dalla Porta: “o movimento é uma bandeira de luta pela dignidade e
que se conquista com a igualdade. Eu tenho que querer o que é bom para o meu
irmão, para o meu vizinho, para a criança do vizinho. Tem que ser socializado”!
Explicou.
No
entanto, depois de passados 30 anos de ocupação e 23 anos de desapropriação da
terra, os antigos proprietários que compunham o grupo Atalla entraram na
justiça em 2014 com uma ação de reintegração de posse. De acordo com Celso
Anghinoni, isto nos permitiu entrar na justiça com pedido de usucapião. Numa
das assembleias, decidimos fazer um levantamento geográfico dos nossos lotes,
porque o documento que temos de concessão de uso não determina o tamanho do
lote de cada um. Para poder entrar com pedido de uso campeão tem que ter este
mapa descritivo, a maioria já fez e encaminhou ao advogado para dar entrada ao
pedido de usucapião. Agora estamos no aguardo para ver o desfecho disso”.
Porém
essa ação de reintegração de posse de 2014 tem amedrontado alguns moradores do
Assentamento Rural Pontal do Tigre, como nos revelou a moradora Luzia Conceição
Voss de Lima ao questionar: “Será que eles não pensam no tanto de família que
tem aqui dentro? Não imaginam que todo mundo já casou, criou os filhos, tem
netos e que todos são frutos dessa terra”? Outra moradora, Clarina Borges
Menegassi, explicou que o assentamento corre o risco de reintegração de posse
por conta de um procedimento mal administrado pelo INCRA - Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária. Ela explicou que “quando foi decretado o
assentamento em 1995, a Constituição dava direito ao fazendeiro a 25% da área e
dentro dessa área imaginava-se que era a do Centrão e do assentamento Capanema,
mas daí teve toda essa discussão, virou assentamento, mas, depois o INCRA não
pagou, porque o grupo Atalla pediu um valor muito alto [...]. Aí tinha um
período para recorrer da decisão e o INCRA não recorreu, mas o grupo Atalla
recorreu”. De acordo com Celso Anghinoni “o grupo Atalla pediu ao INCRA uma
indenização de 539 milhões, um valor muito acima do valor do que vale esta área
hoje”.
A
entrevistada Clarina Borges Menegassi relatou que aconteceu uma assembleia em
31 de agosto de 2018, entre os moradores do assentamento e os advogados do
grupo mega-latifundiário Atalla e disse que “nós não éramos mais assentados e
nem acampados. A gente já não sabia mais o que a gente era. Então, são mais de
30 anos que o pessoal está aqui em cima. É uma vida. Depois de tudo o que foi
construído [...]. E agora, o que fazer”? No entanto, os advogados deixaram
claro que “o grupo Atalla não tem interesse na área, mas ele quer a
indenização, ele quer o dinheiro”. Foi o que tranquilizou um pouco os
moradores. De acordo com Celso Anghinoni, a assembleia deste dia 31 de agosto
de 2018, contou com a presença massiva dos assentados, do juiz da Vara da
Justiça Federal de Umuarama, dos advogados e peritos do grupo Atalla, dos
peritos da Justiça Federal e dos funcionários do INCRA. “Esta assembleia
aconteceu aqui na data citada para esclarecer toda a comunidade assentada que
não se tratava de pedido de reintegração de posse, mas sim um levantamento da
área total existente e quanto da área estava sendo ocupada com alguma cultura
desde o tempo em que ela foi ocupada”, concluiu Anghinoni.
Delfino também discorreu a respeito da atual conjuntura em que os assentamentos rurais estão ameaçados de despejos e lamentou: “Como agora nós estamos pertinho do natal (2019) até lembro que na noite de natal de 1989, a gente passou fazendo mudança de uma área para outra para evitar um despejo. E depois de passados 30 anos, novamente a gente está de novo sob ameaça de despejo [...]. Na semana passada teve um despejo na São Francisco e em Querência do Norte ainda tem outras áreas ameaçadas. Tomara que este natal seja de paz! A gente está nessa perspectiva”. O despejo mais recente aconteceu em 3 de dezembro de 2019 no acampamento Companheiro Sétimo Garibaldi, o que afeta e assombra todos os integrantes dos 10 assentamentos do município, pois o objetivo de todos é um só, continuar na terra e consolidar o processo de reforma agrária.
FONTES
(ENTREVISTAS)
Entrevista
realizada no dia 15 de dezembro de 2019 por Mariana de Barros Augusto com Celso
Anghinoni, Delfino José Becker e Milton Bolson Dalla Porta, moradores do
Assentamento Rural Pontal do Tigre, em Querência do Norte-PR.
Entrevista
realizada por Mariana de Barros Augusto no dia 21 de janeiro de 2020 com Maria
Júlia da Silva, Clarina Borges Menegassi, Luzia Conceição Voss de Lima e com
José Edilson de Lima moradores do Assentamento Rural Pontal do Tigre, em
Querência do Norte-PR.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMBONI, Vanderlei. A Escola no Acampamento do MST:
Institucionalização e Gestão Estatal da Escola Itinerante Carlos Marighella. 2014. 255 f. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos – SP, 2014.
FABRINI, João Edmilson; ROOS,
Djoni; MARQUES, Erwin Becker; GONÇALVES, Leandro Daneluz. Lutas e resistências no
campo paranaense e o projeto Dataluta-PR. Presidente Prudente: Revista NERA
(Unesp), Ano 15, n. 21, julho-dez. 2012.
GONÇALVES, Sérgio. O MST em Querência do Norte-PR: da luta
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Simpósio Internacional de Geografia Agrária Jornada Ariovaldo Umbelino de
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http://www2.fct.unesp.br/nera/publicacoes/singa2005/Trabalhos/Artigos/Ad%E9lia%20Aparecida%20de%20Souza%20Haracenko.pdf.
HARACENKO, Adélia Aparecida de
Souza. O Processo de Transformação do Território no Noroeste do Paraná e a
Construção das Novas Territorialidades Camponesas.
2007. 627 f. Tese (Doutorado em Geografia). USP - Universidade de São
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Brasil. Brasília, 02 de agosto de 2011. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2011/08/acusado-de-matar-sem-terra-e-condenado-no-parana/. Acesso
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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964
(Estatuto da Terra). Brasília-DF: Palácio do Planalto. Câmara dos
Deputados. Centro de Documentação e Informação, 1970. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4504-30-novembro-1964-377628-normaatualizada-pl.pdf. Acesso em 17/07/2020.
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição Federal. Brasília-DF:
Palácio do Planalto. Presidência da República, Casa Civil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 28 de maio de 2020.
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